Carta Introspectiva

Belém, 6 de dezembro de 2011.

Talvez rasgue essa carta antes de ler, talvez leia sem ler, passando a vista rápido sob sombras de palavras que pelo seu sentido, conhecimento ou simplesmente fonética lhe caem melhor ao pensamento para que construas uma imagem de mim na qual a carta irá lhe convir ou ainda jogue as chamas todas as linhas fazendo com que se percam todos estes dizeres de uma alma aflita. Eu entendo e faria o mesmo se não tivesse, hoje, alma aflita por questões que me fogem. A primeira e única carta que te escrevi é o suficiente de mim.
Eu perdi muita coisa e neste exato momento cada hora que se passa aumenta a distância entre aquele o que eu fui e quem realmente sou. E como isso pôde ocorrer? A resposta está obvia: fui imprudente. Realmente pensei que pudesse negar o destino, embora ele não exista em si como destino, mas tão somente como uma lógica de fatos regida sabe-se lá por quem, se por Deus em sua torturante bondade que nos manda ao mundo para o sofrimento, seja pelo Diabo que em sua misericordiosa maldade nos faz ter prazer na carne abandonando-nos em um torpor miserável e vazio. O fato nisso tudo porém está que há algo nítido capaz de reger a vida de cada ser humano e entre elas a minha, fadada a cometer sempre os mesmos erros, vivendo em uma moenda sem fim.
Eu sofro mas não é por ti. Deixo-te claro, tu fostes apenas uma ilusão. E como eu te afirmo isso depois de escrever exatamente o contrário na primeira carta? É tão cruel falar isso pra mim mesmo mas é a verdade: tudo ilusão. Talvez eu não tenha verdades e fique tateando por reflexos interiores lutando continuamente com o mundo que me faz ser o que sou e aquilo que eu queria ser e não sei como é; Independentemente disso preciso te dizer por que eu cheguei à conclusão de que esse amor (usando esta palavra somente para ilustrar aquilo que quero dizer) é uma transmutação de um amor que senti e que nunca abandonei por que necessito deste sentir em minha existência.
Desde a Bela Dama tenho disfarçado isso. Na verdade é bem mais provável que seja desde o primeiro sentimento, quando tinha 13 anos e não sabia nada do mundo, ou quase nada do que é bom. Na minha vida só conheci a indiferença do homem, seu preconceito, sua torpeza, suas ações balizadas no interesse e no individualismo, sua capacidade de traição, sua falta de consideração e apreço com o semelhante e o que mais machucava: um ódio, um descaramento, um desprezo disfarçado de piedade com que miravam os olhos sujos de um brilho morto como flechas sangrentas, julgando-me sempre incapaz de imitar a vida humana. Eu nunca fui capaz mesmo porém aprendi a crescer e me juntar aos outros de tal forma que não me importou mais o fato de ninguém nunca enxergar o “Diego” como “Eu” e sim o “Diego” como “Ser subjuntivo à uma condição meramente mortal e reduzido por Deus a incapacidade física evidente”.
Eu nunca aceitei a diferença e queria ser como os outros. Não entendia minha culpa: o que fiz para que fosse sempre o último em tudo? As pessoas riam de minhas tentativas tolas de me igualar num projeto de gente que eu nunca seria. Todos podiam virar o braço esquerdo de modo a ver a própria palma da mão sem dificuldades. Era para mim, e sempre foi uma humilhação não poder fazer o mesmo; abaixava minha cabeça, envergonhado desta circunstância enquanto os outros podiam vislumbrar seu futuro na cartomante eu permaneceria sempre como um incógnito presságio.
Na época não sabia que meu futuro não estava escrito na palma esquerda da mão, assim como foi lido na minha outra palma que não sofria da mesma dificuldade, no entanto, isto deixou um vazio que não era o primeiro e acumulava somando-se aos outros vazios que passariam a povoar inteiramente meu coração infeliz. Comecei a ter preocupações que ninguém tinha, enquanto todos podiam viver suas vidas, jogar bola, correr desenfreado pelo mundo, quando a opressão passou a me superar tive consciência que nunca seria igual à normalidade e acabei me isolando de vez no mundo literal. Conto isso por que sentia, ou sinto, que se conta-se pareceria menos dolorosa a forma como tudo aconteceu todavia não diminuiu em nada. Pelo contrário, é como reviver em múltiplas e pequenas mágoas toda a mágoa grande que persisti em querer me destruir.
Meu futuro estava escrito na solidão. Os outros afortunados tinham luz e eu só tinha escuridão para viver. Assim estava escrito e assim aconteceu. A minha primeira paixão era um perenal sentimento não compreendido apenas despertado numa fagulha intensa que torturava minha alma misturando prazer e dor sepulcral. Eu me lembro de todos os nomes muito bem. Eu já não sei se senti algum verdadeiro sentimento ou se tudo não passou de uma tentativa de fuga evidente do destino escrito na palma da mão que nunca vai poder ser lida. Aurora. Ela foi um marco muito forte comparável apenas a Bela Dama, ainda assim ficando abaixo dela na linha de discurso. Quando eu a vi pela primeira vez minha solidão, antes contentada em me atormentar somente pela estrutura física enquanto que minhas faculdades mentais e sentimentais preservar-se-iam no labor momentâneo e prazeroso de cada livro, enfureceu-se e me jogou na tormenta do mundo adolescente e nos desejos imperiais que nos demovem o instinto.
Falar dela nesta carta seria muito exaustivo para mim, levei três anos para abandonar aquele sentimento. Por ela, ou por mim, acertadamente por minha solidão fiz várias coisas que exerceram algo positivo na minha vida. Troquei de turno na escola (fato que me fez invariavelmente ir de encontro às ciências humanas), despertei-me como poeta ou fui despertado (fator positivo e negativo pois exacerbou meu lado ultra-sentimental e me deu uma vazante para todo meu antiquado jeito), conheci a igreja e a Deus (também muito importante já que por certo tempo, ínfimo pra falar a verdade, a solidão me abandonou e pude respirar o ar puro uma única vez na vida). Só que depois das várias tentativas de dizer para ela alguma coisa acabei por destruir-me invariavelmente. É que eu, e isso podes ver pela carta que te escrevi, não sei sentir por mim mesmo em deliberação e ação corporal e parece que sinto em um desejo embora do corpo somente explicável e aceito se por ventura teorizado na figura da carta e do poema. Assim parece que sempre estou fingindo sentir e acreditando que sinto o que geralmente finjo! Esse é o máximo dessa questão, essa experiência é que me fez perder totalmente ou ver que nunca tinha tido, o tato para os sentimentos. O que em meu coração parecia vasto e grandioso nos olhos das pessoas era coisa diminuta e desprezível.
Isso massacrou tudo por dentro, remoeu, doeu, fez-me chorar durante dias, embora as lágrimas nem sempre exteriorizassem a raiva do desprezo que as pessoas sentem pela minha figura, desprezo esse que infelizmente agora tu sentes e pelas mesmas razões que sempre aconteceram comigo. Prova da minha teoria sobre destino embora eu ainda não saiba quem o rege pois não posso tomar a solidão como “Ser divino” ou “Ser Maligno” que são as duas concepções segundo minha primeira condição de aprendizado católico e depois o aprendizado luterano que podem exercer influência na vida humana, uma influência na verdade que ninguém pode ver racionalmente ou de qualquer modo inteligível.
Note que eu uso muito as palavras “Sempre” e “Vazio” porque só a alma solitária entende o peso e o valor dessas palavras. E mais uma vez eu não posso dizer com clareza por que te falo de tudo isso, te amolando com meus pensamentos, com meu individualismo, com minha solidão cega, eu não me controlo e tu que dizes coisas tão lógicas me aconselhaste varias vezes a fazer o mais óbvio nesse caso, procurar ajuda e parar de sondar solução com a força dos meus próprios braços mas em tudo na vida eu sou SÓ e qualquer outro não será capaz de encher meu copo até a borda e transbordá-lo. A solidão é isso: quanto mais enche-se a taça mais ela se esvazia.
Então já não haveria mais sentido. Todo este sentimento desperto na Aurora depois se tornou algo muito maior e trabalhado na complexidade da existência quando conheci a treva total e vivi intensamente cada e todo momento da Grande Tragédia. Continuei sem compreender o acordo social das pessoas e tentei vivê-lo como se assinasse um contrato sem ler. Aí está um dos erros que nunca mais vou cometer. Assinar uma coisa sem ler! É terrível! Foi o período artístico mais intenso, minhas melhores composições foram lá, meus melhores textos, transbordava poesia por todos os poros e não sentia nenhum incômodo quando sentava para escrever, simplesmente escrevia por boa vontade e impelido por algo maior do que eu.
Só que este “algo maior do que eu” justamente pelo fato de ser maior do que eu acabou me esmagando. Cai infinitamente. Perdi o pilar da normalidade. Fui aos extremos e vivi do céu ao abismo num átimo de tempo. E fiquei indo e vindo, indo e vindo até que já não podia viver e aceitar essa intercalação de nuances, de momentos de glória que eu nunca comemorava, momentos de tragédia que eu sempre bebia, tive vícios que sempre controlei e parti para o nada.
Quando caminhava fazia-o por caminhar. Respirava por respirar. Mantive a normalidade simplesmente por manter. Trabalho, amigos, ir à feira, passou a ser parte da matéria cotidiana. Ler um livro tornava-se abstrato. Enquanto prendia-me a realidade por meio daquilo que seria o teórico-normal o mundo acontecia e cada vez mais eu descendia de minha condição humana, desprovido de qualquer teto, nu, transformei-me nessa coisa sem escrúpulos que vês por entre a janela e protegida da chuva pelo vidro invisível que lhe retira a minha casca e deslumbra então o Animal da noite, Lobo Urbano que sangra.
Eu sou esse Lobo Urbano. Não um selvagem. Nunca poderia ser um selvagem. Gosto por demais das outras pessoas: aprecio como poucos o homem e sua invenção social, suas crenças, suas formas de amor, seu jeito de amar, suas frustrações sem sentido, seu medo sem causa, seu choro sem dor, sua condenação sem culpa. Igualmente amo e odeio tudo isso exatamente por não enxergar como todos o quão tola é essa forma de vida, quão tolos são todos esses anseios e esses desejos, e cada coisa deixava para trás a ânsia de conhecer essa normalidade ou o sonho de viver além do meu próprio fatalismo.
Assim fui escorraçado do bando. A matilha nunca quis um lobo de pele cinza. Tive de aprender a sobreviver na cidade, aprendendo em cada beco como me camuflar, passar desapercebido, usar de alguns artifícios para não perceberem minha pele cinza. Mas o Lobo é o Lobo. Sempre foi e sempre será.
Não há margem para erro. Pessoas sofrem e sempre vão sofrer agora que tipo de pessoa todos acham que eu sou? Quando conto desta dor, das tragédias e das coisas que o mundo me fizera às pessoas se limitam a dizer que tem muita gente pior do que eu como se este fato pudesse estancar ou me fazer refletir sobre quão miserável é minha dor. Na verdade isso não importa ou por acaso me tomam por tolo de não saber que o mundo é dor? Eu vim desse mundo, tenho muito mais propriedade para falar dessa dor do que aqueles que dizem que há pessoas com sofrimentos maiores. Elas existem e não sofrem menos por saber que outros sofrem mais, só gente perversa pode ter tal prazer e enxergar no sofrimento dos outros forças para enfrentar o seu próprio.
Vou deixar essa linha inacabada pois sinto que vou adormecer ou me matar se esta carta se prolongar mais. Não tenho que fazer isso mas esse desejo é grande e por isso vou continuar minha leitura. Alguém bate na minha porta neste exato instante, não pode ser você evidentemente, estás a milhas de distância. É mais provável que seja minha mãe ou o carteiro, um preocupado com meu sumiço e o outro com meu dinheiro.

Adeus ilusão minha,

Deusa A.

O Poeta Solitário

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